Você provavelmente já ouviu algum comentário preconceituoso acerca de cursos de memorização.
“Prefiro entender a memorizar”
“Oras, de que me adianta memorizar listas de objetos ou longas sequências de dígitos? Quero é memorizar leis e conceitos!”
“O curso era pura enganação! Não ensinaram como ler e memorizar tudo o que leio.”
“Cursos de memorização ensinam apenas truques que não possuem qualquer aplicabilidade prática.”
Esses comentários se originam de certo desconhecimento acerca da memória e de seu funcionamento. Veja a seguir como a memória funciona e os principais mitos envolvendo a memorização.
Memória não é uma “coisa” ou uma parte do seu corpo
Lembrou agora, Hurley? | Cena do mais recente episódio de Lost
As pessoas frequentemente falam de suas memórias como se a memória fosse uma parte de nosso corpo.
É comum as pessoas dizerem que possuem uma boa ou má memória da mesma maneira que dizem que possuem bons dentes, bom coração ou bons rins. É comum dizerem que sua memória anda falhando com a mesma propriedade que são capazes de dizer que suas vistas andam falhando.
Ao contrário do que pensa o imaginário popular, a memória não pode ser identificada da mesma maneira que um órgão ou glândula de nosso corpo.
Aquilo que chamamos de memória é, na verdade, dezenas de processos completamente diferentes. Por exemplo, imagine um campeão de xadrez. Certamente, ele possui ótima memória para guardar inúmeras jogadas e estratégias de xadrez. No entanto, possuir uma boa memória para o xadrez não é garantia que se tenha também uma boa memória para diversas outras atividades como lembrar-se de nomes, rostos, datas, a lista de compras do supermercado ou até mesmo o que almoçaram ontem.
Você certamente conhece um professor bastante inteligente e extremamente “esquecido”. Oras, se esse professor é capaz de dominar o assunto que leciona, memorizando diversos fatos e conceitos, ele deveria ter uma boa memória em outros contextos.
Assim, aquilo que chamamos de memória é um processo complexo formado por diversos subsistemas específicos.
Tem E-mail pra você: a bala de prata da super memória
Creio que, de todos os emails que recebo diariamente solicitando dicas de memória, um tipo é o mais recorrente:
“Qual o segredo para uma super-memória?”.
Ao me assistirem realizando proezas envolvendo a memória na TV, surge a expectativa de que eu guarde um segredo único e capaz de tornar a memória de qualquer pessoa em uma memória fotográfica. Assim, imaginam que, de posse desse segredo, serão capazes de se memorizar conceitos, fórmulas, leis ou qualquer coisa que se deseja, com uma memória perfeita.
Infelizmente, essa expectativa jamais será alcançada.
Link YouTube | “Oi, eu sou a Dory…”
Imagine que você é um professor da escola básica que ensinará a seus alunos como utilizar cada item de seu material escolar. Inicialmente, você apresenta a seus alunos uma cola e lhes ensina as diversas coisas que uma cola é capaz de colar.
Em seguida, um dos alunos lhe pergunta:
“Entendi que a cola serve pra colar, mas como utilizá-la para cortar o papel?”.
Após ouvir atentamente a pergunta, você explicaria que a cola serve apenas para colar. Caso alguém necessite de cortar papel, é necessário utilizar um instrumento chamado tesoura. Assim, não existe algum componente do material escolar capaz de colar, cortar, escrever e apagar. Cada item tem um uso particular em cada contexto.
O mesmo acontece com a memória.
Não existe uma estratégia ou segredo capaz de resolver todos seus problemas envolvendo sua memória. Se você deseja melhorar sua memória para nomes e rostos, será preciso utilizar um conjunto de estratégias. No entanto, se você desejar se lembrar de leis e artigos da constituição, as estratégias serão completamente diferentes.
Assim, para cada tipo de atividade, será preciso uma estratégia completamente diferente.
Veja alguns exemplos:
• Qual a estrutura do texto a ser memorizado? Por exemplo, memorizar dados arbitrários ou um artigo de opinião não requerem as mesmas estratégias.
• Quem utilizará a técnica? Por exemplo, um professor de física e um aluno utilizarão estratégias completamente diferentes para conseguir estudar um novo livro de física.
• Como a memória será avaliada? Por exemplo, uma tarefa de simples reconhecimento talvez requeira uma estratégia diferente de uma tarefa de evocação.
• Qual o uso que se fará com os dados memorizados? Por exemplo, memorizar a lista de presidentes do Brasil não é o mesmo que saber relacioná-los aos seus respectivos contextos históricos.
• Qual a maneira como se deseja memorizar o texto? Por exemplo, para memorizar poesias ou salmos da Bíblia, é importante memorizarmos ipsis literis (na íntegra, palavra por palavra). Em contrapartida, para outros tipos de textos, basta saber os conceitos e palavras chave do assunto.
• Por quanto tempo se deseja armazenar o assunto? Suponha que você deseja memorizar um número de telefone apenas para ser capaz de realizar uma ligação. Nesse caso, talvez não seja necessário utilizar uma estratégia muito eficiente. No entanto, se seu desejo for memorizar o número pelo maior tempo o possível, será necessário utilizar uma estratégia específica.
Assim, para cada tipo de contexto é preciso utilizar um método específico de memorização.
Mnemônica não é mágica, porra. QI mais alto não é, necessariamente, mais memória.
Ao assistirmos a propagandas de diversos cursos e livros de memorização, temos a impressão de que essas técnicas de memória são capazes de tornar a memorização em algo extremamente fácil e espontâneo.
Isso não é verdade.
Geralmente, as técnicas de memória requerem ainda mais esforço que os métodos tradicionais. No entanto, ao utilizar técnicas de memória, os resultados obtidos costumam ser mais duradouros.
Link YouTube | Episódio sobre memória da série “Psychology: The Human Experience”
Alguns acreditam que uma pessoa inteligente (alguém com alto QI) é capaz de memorizar mais facilmente que uma outra pessoa menos inteligente (alguém com baixo QI). É verdade que existem certas relações entre memória e inteligência.
Por exemplo, imagine que um teste de memória é aplicado a dois grupos: um composto por pessoas de alto QI e outro por pessoas de baixo QI. Caso nenhum desses dois grupos tenha participado de qualquer treinamento de memória em toda sua vida, o grupo de alto QI certamente conseguiria uma pontuação maior. Uma explicação para isso é a de que pessoas inteligentes costumam criar e utilizar técnicas de memória mais frequentemente.
Pesquisas mostram que bons alunos mostram mais iniciativa para utilizar e criar técnicas eficientes de aprendizagem se comparados com alunos com histórico de fracasso escolar. No entanto, se um grupo de indivíduos com alto QI fosse comparado com outro grupo, composto por pessoas de QI normal, mas mais baixo do que o primeiro grupo, o grupo com QI menor conseguiria melhores resultados.
Além disso, uma pesquisa realizada com os oito primeiro colocados no campeonato mundial de 1993 identificou que eles perdiam sua habilidade excepcional de memorização quando solicitados a memorizar informações para as quais eles não possuíam uma estratégia específica de memória. Por exemplo, os campeões de memória não tiveram um desempenho excepcional ao tentar memorizar o formato de flocos de neve vistos em um microscópio .
Assim, ao contrário do que se imagina, a capacidade de lembrar é uma habilidade aprendida, não inata.
Desse modo, o desenvolvimento da memória é equivalente ao desenvolvimento de qualquer outra habilidade. Da mesma maneira que ninguém nasce um gênio da música ou um campeão de tênis, ninguém nasce com boas habilidades em memorizar. Obviamente, existem pessoas que nascem com um talento em potencial para determinadas atividades. No entanto, se não tiverem algum processo de aprendizagem (mesmo que autodidata), não serão capazes de desenvolver tal talento. O mesmo vale para a memória: se você não desenvolver estratégias específicas para cada domínio de memória, você nunca terá uma boa memória.
Muitas pessoas não entendem isso e, quando descobrem que uma boa memória requer prática, simplesmente desistem.
Infelizmente, diversos “professores” de memorização de técnicas de estudo utilizam o seguinte slogan:
“Nosso curso não requer treinamento em casa”.
Esse tipo de propaganda apenas alimenta esse imaginário popular, visto que é impossível melhorar sua memória sem o mínimo de esforço para o uso das diversas estratégias em cada contexto específico.
Se você deseja beneficiar-se dos diversos sistemas e princípios que serão abordados em breve aqui no PapodeHomem, prepare-se para dedicar-se! Como dizem nos Estados Unidos, não existe almoço grátis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário